quinta-feira, junho 09, 2005

O espectro liberal por Rui Ramos

Com os agradecimentos ao autor e ao Diário Económico que permitiu o link, aqui vai o artigo completo.

O espectro liberal


O chamado “modelo social” não tem sido muito eficaz para poupar os europeus a crises e desigualdades.

O referendo francês sobre a chamada Constituição Europeia revelou um facto curioso sobre os líderes políticos em França. Em desacordo acerca da Constituição, mostraram-se quase todos de acordo na rejeição do “liberalismo”. Quem defendeu a Constituição, fê-lo porque lhe pareceu uma muralha de aço contra o liberalismo, e quem a atacou, porque, ao contrário, lhe pareceu uma porta aberta. Em Portugal, os congressos e convenções partidários dos últimos dois meses deixaram transparecer a mesma comunhão espiritual. Do CDS ao Bloco de Esquerda, nada mais se fez do que gritar e espumar contra os “liberais”.

Donde vem esta unanimidade anti-liberal? A maioria dos líderes europeus admite, actualmente, que a chamada “economia de mercado” é o único mecanismo para criar riqueza. Argumenta, porém, que deve ser controlada pelo poder político. Seria o meio de evitar que os indivíduos gerassem irresponsavelmente, através da sua acção livre nos mercados, as desigualdades sociais e crises económicas que poderiam pôr em causa a democracia. Ao rejeitar o liberalismo, os líderes europeus estariam a defender a democracia contra a inconsciência social e política que, segundo parece, fatalmente afecta os cidadãos quando no papel de empresários, investidores ou consumidores. A questão do liberalismo seria assim a questão da democracia. O que é verdade, mas não pelas razões que os líderes políticos europeus invocam.

No século XIX, os antepassados dos actuais líderes políticos usaram a democracia para destruir as monarquias na Europa. Obtiveram o direito de governar os Estados, não como uma aristocracia, mas em nome do direito de todos os indivíduos ao auto-governo. Isso criou-lhes o problema de saber o que fazer com aquela parte da população – a maioria – que não era nem tão instruída nem tão afortunda como eles. Temeram que essa população aproveitasse os direitos políticos para provocar um regresso eleitoral ao passado clerical e dinástico, ou então para se lançar numa anarquia expropriadora. Convenceram-se de que não podiam esperar que o povo, entregue a si próprio, se transformasse num conveniente reflexo deles próprios, ilustres cavalheiros da classe média. O Estado Social desenvolveu-se para criar um povo domesticado. O poder político adquiriu assim o direito de decidir sobre a vida dos indivíduos, da educação aos investimentos. E com isto, os líderes políticos europeus puderam conceber a democracia de um modo mais agradável. Em vez de afirmarem a sua liderança através de debates envolvendo uma população de cidadãos autónomos e diferentes, puderam propor-se governar como quem pastoreia uma massa mais ou menos homogénea de clientes do Estado. Muitos funcionários públicos, muitos subsidiados, muitos pensionistas, e muitos protegidos formaram eleitorados vulneráveis às manipulações mais grosseiras. O chamado “modelo social” não tem sido muito eficaz para poupar os europeus a crises e desigualdades. Mas tem permitido, em geral, aos actuais líderes políticos governar democracias sem invejar demasiado o conforto autocrático com que outros, no passado, governaram monarquias.

Há liberais de várias espécies. Une-os a ideia de que as decisões fundamentais sobre o modo de vida de cada um devem ser tomadas pelos indivíduos, e não pelo poder político, como se estivéssemos em tempo de guerra. E é aqui que nasce a raiva dos actuais líderes políticos europeus ao liberalismo. Está em causa o poder deles, tal como o exercem agora, burocraticamente. Porque poderiam exercê-lo de outra maneira, por exemplo, democraticamente. O medo ao liberalismo é o medo à democracia.