domingo, junho 26, 2005

Tony Blair no Parlamento Europeu em 23 de Junho e 2005

O discurso de Tony Blair no Parlamento Europeu com transcrição integral em inglês aqui é um exemplo notável da mistificação que nos é feita todos os dias sobre o debate europeu, que nos trás para casa a realidade completamente distorcida. Por obra e graça de três intervenientes.

Em primeiro lugar pela manha do virtuoso manipulador Presidente Jacques Chirac, que conseguiu transformar uma crise provocada por uma derrota monumental nas urnas, numa crise provocada pela devolução do cheque britanico.

Em segundo lugar, e já bem perto de nós, pela arrogâcia simplista com que o Primeiro Ministro português José Socrates consegue falar sobre o egoísmo dos ingleses. José Socrates não pode ignorar que a contribuição total líquida que Portugal recebe, é inferior ao montante líquido pago pela Grã-Bretanha, o segundo contribuinte líquido da Comunidade a seguir à Alemanha.

Em terceiro lugar, como não podia deixar de ser, pelo desconhecimento perguiçoso que a nossa paroquial classe jornalistica mostra sobre a problemática europeia: como de costume alinhou com o poder instituído, e limitou-se a transcrever as caricaturas lidas de alguns jornalistas franceses e belgas, sem procurar sequer entender o fundo da questão.

Vale a pena traduzir alguns parágrafos do discurso de Blair para ler o que ele disse, e depois comparar com o que foi dito e comentado sobre esse discurso aqui em Portugal.

"...

Qualquer que seja o desacordo sobre a Europa hoje, todos concordam ao menos num ponto: a Europa está no meio de um debate profundo sobre o seu futuro.

Quero falar-vos sobre esse debate, as suas razões e como resolvê-lo. Em todas as crises há uma oportunidade. Há uma para a Europa agora, se tivermos a coragem de a enfrentar.

O debate sobre a Europa não devia ser conduzido debaixo de insultos, ou em termos de personalidades. Devia ser uma troca de ideias aberta e franca. E desde já quero descrever claramente como defino esse debate e os desacordos subjacentes.

A discussão não é sobre uma Europa de "mercado livre" e uma Europa social, entre os que se querem refugiar num mercado comum, e os que que acreditam na Europa como projecto político.

Isto não é apenas uma falsidade. Serve para intimidar todos aqueles que querem a mudança na Europa, por apresentarem o desejo de mudança como uma traição ao ideal europeu, tentanto fechar o debate sobre o futuro da Europa, alegando que a sua discussão implica abraçar a anti-Europa.

É um sistema de pensar contra o qual combati toda a minha vida politica. As ideias sobrevivem através da mudança. Morrem pela inércia frente à mudança.

Sou um pró-europeu apaixonado. Sempre fui. O meu primeiro voto foi em 1975 no referendo britânico sobre a adesão e votei sim. Em 1983, quando fui o ultimo candidadto britanico a ser escolhido logo antes das eleições, e quando o meu partido tinha uma politica de sair da Europa, disse à conferência de selecção que estava em desacordo com essa politica. Alguns pensaram que eu tinha perdido a eleição. Talvez até tenham desejado que assim fosse. Ajudei então a mudar essa politica durante os anos 80 e estou orgulhosos da mudança conseguida.

Desde que sou Primeiro Ministro assinei o Acordo Social, ajudei, com a França, a criar a moderna Politica de Defesa, fiz o meu papel nos tratados de Amsterdam, de Nice e de Roma.

Esta é uma união de valores, de solidariedade entre as nações e povos, não apenas um mercado comum onde se fazem negócios, mas um espaço politico comum onde vivemos como cidadãos.

Será sempre isso.

Acredito na Europa como projecto político. Acredito na Europa como uma dimensão social forte e acarinhadora. Nunca aceitaria uma Europa que seja apenas um mercado económico.

Dizer que isso é o que está agora em causa é escapar ao verdadeiro debate e escondermo-nos na zona confortável das coisas que dissemos uns aos outros em momentos de dificuldade.

Não existe nenhuma divisão entre a Europa que é necessária para ter sucesso económico e a Europa social. A Europa politica e a Europa económica não vivem em quartos separados.

A finalidade da Europa social e da Europa económica é a de sustentarem uma a outra.

A finalidade da Europa Política devia ser a de promover as instituiçoes democraticas e eficientes para promover políticas nessas duas esferas e em todos os lados onde queremos e precisamos de cooperar no nosso interesse mutuo.

Mas afinalidade da liderança politica é a de fazer as politicas correctas para o mundo de hoje.

Há 50 anos que os líderes da Europa fazem isso. Falamos de crise. Vamos falar antes de sucessos. Quando a guerra acabou, a Europa estava em ruínas. Hoje a Europa é um monumento ao sucesso politico. Quase 50 anos de paz, 50 anos de prosperidade, 50 anos de progresso. Pensem nisso e agradeçam.

.....

Saídos da carnificina da segunda guerra mundial, os líderes políticos tiveram a visão de realizar que esses dias tinham passado. O mundo de hoje não diminui essa visão. Demonstra a sua sabedoria. Os Estados Unidos são a unica superpotência mundial. Mas tanto a China como a Índia se tornarão dentro de algumas décadas as maiores economias do mundo, cada uma delas com populações três vezes as da União Europeia. A ideia de uma Europa unida e trabalhando em conjunto é essencial para que as nossas nações sejam suficientemente fortes para manter a sua presença no nosso mundo.

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Como sempre as pessoas andam à frente dos politicos. Como classe politica pensamos que as pessoas que não estão envolvidas com a obcessão diária da politica, não entendem, não vem as subtilezas e complexidades da politica. Mas no final as pessoas vem melhor a politica do que nós. Precisamente porque não estão diariamente obcecadas como nós.

A discussão não é sobre a ideia da União Europeia. É sobre a modernização. É sobre as politicas. Não é um debate como abandonar a Europa, mas como transforma-la naquilo para que foi concebida: melhorar a vida das pessoas. E as pessoas hoje não estão convencidas. Considerem isto.

Durante quatro anos a Europa conduziu um debate sobre a nossa nova Constituição, dois anos na Convenção. Foi um trabalho detalhado e cuidadoso fazendo as regras para governar uma Europa de 25, e no seu tempo de 27, 28 e mais estados membros. Foi endossada por todos os governos. Foi suportada por todos os líderes. Foi então completamente rejeitada em referendos por dois estados fundadores, no caso da Holanda por mais de 60 por cento. Na realidade, na maioria dos estados membros, seria hoje dificil obter uma maioria de "sim".

Há duas explicações possíveis. Uma é a de que as pessoas estudaram a Constituição e estiveram em desacordo com os seus artigos. Duvido qe isso esteja na base da maioria do "não". Não se tratava de um caso de má fraseologia.

A outra explicação é a de que a Constituição se tornou o veículo pelo qual as pessoas manifestam um grande e profundo descontentamento com o estado das coisas na Europa. Acredito que esta seja a análise correcta.

Se é assim , não se trata de uma crise das instituições politicas, mas sim uma crise de liderança politica. As pessoas na Europa estão-nos a colocar questões difíceis. Preocupam-se com a globalização, segurança no emprego, pensões e níveis de vida. Vêm que não é só a economia mas também a sociedade que está em mudança ao seu redor. Comunidades tradicionais são destruidas, modelos étnicos mudam e é a própria vida familiar que está em apuros quando se quer fazer o balanço entre a casa e o trabalho.

Estamos a viver uma era de alterações e mudanças profundas. Olhem para os vossos filhos e para as tecnologias que usam e para os mercados de trabalho que os esperam. O mundo está irreconhecível do que experimentamos como estudantes há 20, 30 anos atrás. Quando essas mudanças ocorrem compete aos moderados mostrar liderança. Se não o fizerem são os extremos que ganham força no processo politico. Acontece nos países. Está a contecer na Europa agora.

Reflitam nisto: a Declaração de Laeken que lançou a Constituiçao foi desenhada para "trazer a Europa mais perto das pessoas". Fê-lo? A agenda de Lisboa foi lançada em 2000 com a ambição de tornara Europa "o mercado mais competitivo do mundo em 2010". Já passou mais de metade do tempo. Conseguimos?

Assisti a inúmeras conclusões de Conselhos da Europa, descrevendo que "estamos a conectar a Europa com os seus povos". Estamos mesmo?

É altura de encarar a realidade. De sermos acordados. As pessoas estão a tocar trompetas nas muralhas da cidade. Estamos a ouvir? Temos a vontade politica de ir ao encontro delas para que encarem a nossa liderança como parte da solução e não parte do problema?

É esse o contexto em que deviamos discutir o orçamento. As pessoas dizem: necessitamos de um orçamento que restore a credibilidade europeia. Claro que sim. Mas devia ser o orçamento exacto não abstraído do debate sobre a crise da Europa. Devia ser parte da resposta a esta.

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Como deveria aparecer uma nova agenda politica europeia?

Primeiro modernizando o nosso modelo social. Alguns sugeriram que eu quero abandonar o modelo social europeu. Mas digam-me: que modelo é este que tem 20 milhões de desempregados, os níveis de produtividade a cair para baixo do Estados Unidos; que permite que mais licenciados em ciencias sejam produzidos pela India que pela Europa; e que, em qualquer indice relativo de uma economia moderna - especialistas, pesquisa e desenvolvimento, patentes, tecnologias de informação, está a descer e não a subir. A India vai expandir o seu sector biotecnológico cinco vezes nos próximos cinco anos. A China triplicou nos ultimos cinco o seu investimento em pesquisa e desenvolvimento.

Das 20 melhores universidades do mundo só duas estão agora na Europa.

A finalidade do nosso modelo social devia ser a de melhorar a nossa capacidade de competir, ajudar os nossos povos a lidar com a globalização, deixa-los abraçar as suas oportunidades e evitar os seus perigos. Claro que precisamos de uma Europa social. Mas uma Europa social que funcione.

E já nos disseram como fazê-lo. O reltório Kok de 2004 mostra o caminho. Investimento em conhecimento, em peritos, em politicas de trabalho activas, em parques da ciencia e inovação, em educação universitária, em regeneração urbana, em ajuda às pequenas empresas. Esta é politica social moderna, não é a regulamentação e protecção do emprego que podem apenas salvar alguns empregos agora a expensas de muitos empregos no futuro.

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Esta Europa, - com a economia a ser modernizada, melhor segurança por uma acção clara dentro e fora das nossa fronteiras - seria uma Europa confiante. Seria uma Europa suficientemente confiante para ver o alargamento não como uma ameaça, como se fosse um jogo de soma nula em que os velhos membros perdem e os novos membros ganham, mas uma extraordinaria e historica oportunidade de criar uma maior e mais poderosa união. Porque não tenham ilusões: se paramos com o alargamento ou fecharmos a porta às suas consequencias naturais, no final não salvariamos um só posto de trabalho, não deixariamos uma firma, ou preveniriamos uma só deslocalização. Talvez po um tempo. Mas entretanto a Europa tornar-se-ia mais estreita, mais introspectiva, com o suporte não dos idealistas europeus, mas dos nacionalistas e xenófobos. Mas digo-vos com franqueza: é uma contradição ser a favor de liberalizar as candidaturas mas fechar as economias."