quinta-feira, março 09, 2006

O que faço eu aqui?

Com este título, o inesquecível Bruce Chatwin publicou a sua última obra, (What am I Doing Here, ed. Picador, 1988, 366 páginas, livro sem preço porque trocado por outro em book-exchange na Marina de Bonaire, Mallorca, saudosos tempos), uma selecção pessoal de ensaios, como ele lhe chamou, pouco tempo antes de morrer de uma doença na altura desconhecida (SIDA?).

A pergunta, que tem sido feita por milhões de seres humanos desde há milhares de gerações, não faz mais sentido ser feita, desde que há 150 anos Charles Darwin publicou A Origem da Espécies, seguramente o livro científico do século XIX, que, como tantos outros livros importantes, passou mais ou menos desapercebido entre nós.

A resposta é: nós estamos aqui por acaso (o acaso de Le Hasard et La Necessité de Jacques Monod), porque a seleção natural, a mutação, e a deriva genéticas, fizeram com que uma espécie entre tantas, a nossa, se diferenciasse das muitas outras, e tivesse a linguagem e a inteligência para formular a pergunta. Não há, nem pode haver, nenhum momento mágico em que o macaco se transforma em homem, como os creacionistas nos querem fazer crer, porque esse momento demorou milhões de anos. Somos diferentes dos nossos antepassados de há dez mil anos, e estes diferentes dos seus atepassados de há vinte mil anos, e estes diferentes dos seus antepassados de há cinquenta mil anos, e assim por aí fora, sucessivamente, durante cem mil, um milhão, dez milhões, centenas de milhões de anos, quatro milhares e meia de milhões de anos. As diferenças entre as gerações são ínfimas e só se notam ao longo de muitos milhares de gerações.

Mas a pergunta tem também sido o objecto de uma prática que tanto quanto sabemos é exclusiva ao homo sapiens, a religião. Não é a única. Também a prática da música e das artes, são universais e exclusivas dos seres humanos, mas é a única que se preocupa com a resposta a este tema.

E é curioso notar que as respostas tem evoluído, também sem dúvida pela selecção natural, ao longo da história humana; partilhamos conceitos de distância e de tempo comuns com os nossos antepassados, poderiamos falar com Aristóleles sobre esses temas, mas não partilhamos os mesmos conceitos no que concerne a religião, que tem evoluído como qualquer outra construção do espírito - o Deus de hoje, não é o Deus pessoa física, sanguinária e exigente do Antigo Testamento.

Cada ser humano tem o seu conceito religioso que é aquele que herdou dos seus pais, porque antes de mais a religião é um conceito (meme) hereditário. Para cada um de nós a sua religião é a verdadeira e todas as outras são falsas. Mas as religiões são tão diferentes entre si, como é as diversas expressões da musica ou das artes gráficas. Milhões de católicos veneram Cristo com filho de Deus, e estão dispostos a dar a vida pela sua crença. Milhões de muçulmanos consideram Cristo um qualquer profeta menor, inferior mesmo a Maomé, e também estão dispostos a dar a vida por esta crença. Milhões de Hindús veneram multiplos Deuses, e milhões de Budistas não veneram qualquer Deus, e também eles estão dispostos a dar a vida pelas suas crenças. Milhões de outros tem milhares de religiões diferentes, porque as religiões, ou a sua interpretação, são tantas como os seres humanos.

Acredito que a crença religiosa é inerente à espécie humana, porque desde os agrupamentos familiares e depois tribais, representou o único elo que permitiu que os seres humanos se entendessem, se respeitassem e se aceitassem. Está conosco, dentro de cada uma das nossas mentes, tal como um vírus, em alguns casos inofensivo, benigno até, em outros casos virulento e perigoso.

Sobre este assunto acabei agora de ler um livro de um brilhantismo inescedível, - e muito boas mentes se tem debruçado sobre o tema, e que representará sem dúvida um marco importante no estudo do fenómeno religioso neste século.

Trata-se de Breaking The Spell, Religion as a Natural Phenomenon de Daniel C. Dennet(ed. Penguin Books, 2006, 412 páginas, 25£), um livro que é recomendado por Jared Diamond, aqui já mencionado, e por Richard Dawkins que dispensa apresentação.

Posso garantir que a sua leitura não deixará ninguem indiferente, e muitos bons espíritos incomodados. E mais não digo para não quebrar o spell.