sexta-feira, dezembro 22, 2006

Mingalabah!

A Birmânia de hoje não é aparentemente muito diferente das descrições de Orwell. Estradas más, carros com mais de trinta anos, todos da mesma cor branca revelando a sua proveniência de velhos taxis japoneses, alguma motorizadas chinesas, muitas, muitas bicicletas, muita gente a pé, muita pobreza, mas sem qualquer miséria, sujidade ou sinais de fome. Uma religião omnipresente nos monges e nos templos que nos cercam por todo o lado para onde se olhe. Uma religião pacífica, mistura de budismo com animismo, que acredita que cada um tem o seu destino traçado. O paraíso dos astrólogos: o mundo gira à volta das lições do Buda e o espírito dos nats, que é por eles revelado. Um estado centralizador e autoritário onde é preciso licenças para tudo: para ter frigorífico ou ferro de engomar, ou rádio, ou gravador, ou mais de duas lâmpadas em casa, onde é necessária licença para viajar para outra província ou outra cidade, onde não existem absolutamente nenhuns cuidados de saúde, ou bancos, ou cartões de crédito, telemóveis ou Internet. Onde as escolas são todas públicas. Onde o direito à propriedade pode ser a qualquer momento revogado por qualquer obscuro interesse superior. Onde não existe qualquer reconhecimento de direitos da pessoa humana. Os militares estão por todo o lado, impecavelmente fardados ocupando os melhores lugares, as melhores casas, os jardins e campos de golfe mais bem tratados, e os melhores carros. Eles sim, podem comprar telemóvel no país onde o telemóvel custa mil dólares e o salário é de doze dólares por mês. Quase o paraíso cubano. A inflação é galopante mas ninguém parece saber que a inflação é obra do governo, julgam que é uma coisa estranha que aparece por acaso. A ignorância económica e política é total. Os jornais falam de futebol, e da paixão dos Birmaneses pelo Arsenal e Manchester United (Portugal? Cristiano Lonaldo very good player!), e de crime. Não é permitido falar ou escrever sobre quaisquer assuntos políticos.

O governo militar é financiado e apoiado pela China que está presente em todas as obras, todas as construções, todo o comércio. Na era do cimento, uma nova ponte de dois quilómetros sobre o rio Irawaddy em Mingun, está a ser concluída em ferro, como no século dezanove. O destino da Birmânia, é o de tornar-se uma colónia chinesa a médio prazo.



NB: Um interessante guia para a Birmânia (além do sempre útil Lonely Planet Myanmar/Burma, edição de 2005), e do Guide du Routard, foi o essencial Further India de Hugh Clifford (a minha edição é de White Lotus Co., Bangkok 1990, 378 páginas). Publicado pela primeira vez em 1904, o autor, acérrimo defensor do sistema colonial britânico, descreve de um modo isento para a época, a epopeia do desbravamento destes territórios por parte dos ocidentais, desde a chegada dos árabes, dos primeiros conquistadores portugueses como Albuquerque e outros (the Filibusters), dos primeiros exploradores com nomes que me eram totalmente desconhecidos como António de Faria, António de Miranda, Duarte Fernandes, Ruy de Araujo, Francisco Serrano, António de Abreu, Pedro Afonso de Loroso, e o conhecido Fernão Mendes Pinto, dos grandes exploradores franceses como Mouhot e o famoso Fancis Garnier a quem se atribui erradamente a descoberta dos templos de Angkor Vat, dos holandeses e finalmente dos inúmeros ingleses.

O termo de filibusteiros aplicado aos primeiros exploradores portugueses, tem a sua razão de ser pelo facto de serem, de todos os povos que exploraram o sueste asiático, os portugueses os únicos que construíram fortes, impuseram a sua religião, e comercializaram pela força. Até à chegada dos portugueses eram os árabes os únicos cuja influência se alastrava até ao oriente, e tinham como princípio nunca se imiscuir na politica local. O sucesso dos holandeses e ingleses que vieram depois de nós deveu-se simplesmente ao facto de só quererem o comércio, nunca as terras nem as almas das gentes. A colonização veio depois...

Essa perspectiva é para mim nova, nascido e criado no mundo paroquial da epopeia quinhentista da História de Portugal do Adolfo Simões Mueller. Fui pela primeira vez confrontado com essa realidade há poucos anos atrás em Goa, ao ler num jornal uma opinião crítica sobre Vasco da Gama que me atingiu profundamente, como se tratasse de uma ofensa pessoal.

De todos os modos um livro essencial sobre o Sudoeste Asiático.

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